sábado, 19 de setembro de 2015

Populismo macroeconômico em tempos de boom de commodities

Na sexta-feira participei de um almoço com colegas professores e o pessoal da área econômica da embaixada americana. Em um certo momento o colega de departamento Prof. José Carlos de Oliveira, o mais experiente entre os presentes, foi convidado a comparar a crise atual com crises que tivemos no passado. O professor estava explicando que a crise de 2008 foi uma crise importada, no sentido que veio do exterior, que a crise de 2002 foi uma crise de expectativas de forma que tão logo o governo reverteu as expectativas a crise se desfez e que a crise atual era uma crise mais estrutural e interna. Concordo com a análise do José Carlos, mas, pegando corda na declaração dele de que era o único que estava na ativa desde a década de 1960, resolvi provocá-lo perguntando se a crise atual não guardava semelhanças com as crises das décadas de 50 a 70 conhecidas de vários países da América Latina e que algumas vezes são chamadas de stop and go.

A provocação não foi gratuita, recentemente li o livro Las crisis económicas argentinas: Uma historia de ajustes y desasjustes, de Miguel A. Kiguel, onde é feito um resumo de todas as crises argentinas desde meados do século XX. O stop and go segue um padrão onde governos, geralmente populistas, inflam o crescimento que de fato ocorre, porém não se sustenta, e tudo acaba em uma crise. Como de costume as crises na Argentina seguem padrão semelhante as crises em outros países da América Latina, o Brasil não é exceção, e o padrão stop and go ligado ao populismo econômica aconteceu tanto lá como cá. Seria a crise atual semelhante àquelas crises? Fomos mais uma vez vítimas do populismo econômico? A resposta não é trivial, o fato de ter vivido o governo Dilma e não ter a menor simpatia pela política econômica batizada de Nova Matriz Econômica, me faz quase automaticamente responder que sim e encerrar o assunto. Porém um dos elementos mais característicos das crises advindas do populismo econômico é a crise no balanço de pagamentos, e essa crise (ainda) não aconteceu.

Para tratar de populismo econômico a referência padrão é o texto Macroeconomic Populism publicados por Rudiger Dornbusch e Sebastian Edwards no Journal of Development Economics (link aqui). No texto os autores elaboram o conceito de populismo macroeconômico a partir das experiências do Chile com Salvador Allende e do Peru com Alan Garcia. Segundo os autores o populismo macroeconômico tem três características básicas:

  • Insatisfação com o crescimento do país, geralmente o país atravessou uma fase de crescimento baixo por conta de algum programa de ajuste não raro ligado ao FMI.
  • Não consideração pelas restrições econômicas, a capacidade produtiva ociosa daria o caminho para a expansão, reservas internacionais ou controle de capitais eliminariam o risco de uma crise externa, o risco de déficit nas contas do governo é dito ser exagerado ou sem fundamentos, desde que não ocorra desvalorização do câmbio a expansão não trará inflação, caso a inflação apareça o governo pode sempre recorrer a controle de preços.
  • As políticas prescritas focam em estimular a economia, redistribuição de renda e reestruturação da economia, o lema costuma ser “crescimento com distribuição”, a redistribuição é feita por meio de aumentos significativos nos salários que não são repassados aos preços.


O padrão descrito em 1990 é assustadoramente parecido com o que vimos desde 2006. Naquela época começou o primeiro ponto com acusações à “política de recessão” tocada por FHC. Com a crise veio o discurso da capacidade ociosa e da necessidade de estimular o crescimento, não faltou quem apontasse as reservas internacionais como garantia contra crises. Pobre de quem ousasse falar de déficit público, era logo taxado de pessimista, inimigo da pátria ou coisa pior. E inflação? Falar que a inflação era alta e estava subindo era um convite para ouvir uma divagação a respeito de como a inflação era mais alta em 2002, como se o fato da inflação ter sido alta no passado justificasse leniência com inflação no presente. O terceiro ponto dispensa comentários, crescer com distribuição foi o mantra do governo nos últimos anos e controle de preços virou prática comum para o controle da inflação.

A semelhança entre os elementos do populismo macroeconômico listados por Dornbusch e Edwards em 1990 e o que vimos nos últimos dez anos é perturbadora, porém tudo fica ainda mais preocupante quando observamos as quatro fases do em que o populismo macroeconômico se desenvolve.

1.       No começo os propositores da política sentem-se vingados em seus diagnósticos e prescrições, ocorre aumento no crescimento, nos salários reais e o desemprego cai muito, é difícil não falar de sucesso. Eles nos garantem que inflação não é um problema e desequilíbrios entre oferta e demanda são compensados com importações. Os autores afirmam que as importações podem ser financiadas com reservas ou calotes, não foi o caso aqui, talvez os autores não tivessem considerado a hipótese de populismo macroeconômico junto a um boom nos preços das commodities.

2.       Começam os gargalos por conta de excesso de demanda local ou por falta de dólares, novamente não é o caso, ainda não temos falta de dólares, mais uma vez o boom das commodities pode explicar a ausência desse fenômeno. Redução de estoques que é fundamental na primeira fase passa a ser um problem. Realinhamento de preços, desvalorização cambial ou aumento do protecionismo se tornam necessários, estamos vivendo esse fenômeno. O governo tenta estabilizar o aumento do salário real e no crescimento da própria despesa, mas não consegue. A inflação aumenta, mas os salários sobem junto, o déficit público aumenta de forma significativa (eles dizem: “budget deficit worsen tremendously”). Já estamos vivendo a fase da inflação alta e do crescimento do déficit público, se os salários vão acompanhar a inflação é uma questão em aberto que juntamente com o controle do déficit pode definir se vamos passar para próxima fase ou se vamos parar na segunda fase.

3.       Racionamentos, aceleração extrema da inflação, fuga de capital devida a baixas reservas e uso de outras moedas como referência de valor. O déficit sobe muito por conta de redução na arrecadação e aumento nos custos dos subsídios. O governo tenta cortar subsídios e induzir uma desvalorização real da moeda. Salários reais caem e começa a instabilidade política, fica claro que o populismo deu errado. Novamente não temos os sintomas relacionados a escassez de reservas por não termos (ainda) problemas com as reservas, a inflação ainda pode ser controlada a depender dos itens pendentes na fase anterior. A queda da arrecadação e a pressão dos subsídios já é uma realidade, a instabilidade política também.

4.       Começa um programa de ortodoxo de estabilização, os autores falam de novo governo, aqui estamos tentando fazer com o mesmo governo mudando apenas a equipe economia e mesmo assim parcialmente. Aparece o pedido de socorro ao FMI, não creio que acontecerá por aqui, pelo menos não enquanto as reservas durarem. Haverá uma queda significativa e persistente do salário real, o motivo alegado pelos autores é simples: capital pode fugir de políticas ruins com muito mais facilidade que o trabalho.

Como pode ser visto temos praticamente todos os elementos do populismo macroeconômico, a exceção digna de nota é o financiamento das importações com redução das reservas, e parece que estamos entre as fases dois e três do processo com uma encenação de ajuste da fase quatro. Mais uma vez os elementos que nos diferencia das fases previstas pelos autores é a falta de uma crise nas reservas. Eu arrisco dizer que as características e os sintomas relacionados às reservas estão ausentes porque passamos por uma experiência de populismo econômico em um momento de preços crescentes das commodities, que nos permitiu acumular saldos comerciais positivos por muito tempo, e porque a baixa taxa de juros internacionais reduz os incentivos para saída de capitais.

O fim da festa das commodities já cobra seu preço e o setor externo já não parece tão tranquilo, a brutal desvalorização do real apesar do gigantesco esforço do Banco Central para evitar a desvalorização deveria nos alertar de que há algo de errado no setor externo. O FED adiou mais uma vez o aumento de juros nos EUA sinalizando que a era dos juros muito baixos pode durar muito, isso pode nos dar um prazo extra para realizar o ajuste e evitar que cheguemos aos elementos mais cruéis da terceira e quarta fase como a queda significativa e persistente dos salários reais e a inflação descontrolada, para não falar no agravamento da instabilidade política.

Enfim, experimentamos um populismo macroeconômico em tempos de cenário externo favorável, isso nos poupou, pelo menos até agora, de ir no fundo do poço das fases três e quatro descritas por Dornbsuch e Edwards. É muito possível que o regime de câmbio flutuante que ainda é parcialmente usado pelo BC ajudou a evitar uma crise no balanço de pagamentos. A questão relevante agora é saber se vamos recuar e fazer os ajustes para evitar o pior ou se vamos seguir no mesmo caminho ladeira abaixo até que tenhamos um novo governo para começar a quarta fase nos moldes previstos no artigo.



Um comentário:

  1. Caro Roberto.
    Estamos no número 3.
    Caso não aja uma política austera radical, até quando teremos reservas?
    Quanto tempo você dá a mais para este governo?

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